A Casa na Granja

Na metade da década de 80, meu pai comprou uma casa em Cotia, no bairro da Granja Viana. Usávamos só nos finais de semana.

Era uma casa muito boa — piscina, churrasqueira, rodeada de árvores. Quem conhece a Granja sabe: vizinhança calma, ruas desertas. Um refúgio perfeito da vida urbana de São Paulo.

Nós íamos sempre. Até que o tempo passou... e veio a crise.

Para não vender, meu pai decidiu alugar a casa. Alguns anos depois, as coisas melhoraram e paramos o aluguel. Mas o costume se perdeu. Fomos cada vez menos. Até que um dia, simplesmente, deixamos de ir.

A casa ficou lá, esquecida. Sozinha.


Cinco anos se passaram. Até que um dia o telefone tocou.

Era um policial da região, pedindo para meu pai comparecer à delegacia...

Ele foi achando que era alguma formalidade — talvez reclamação de vizinho, mato alto, coisa assim. Mas quando voltou, estava com o rosto pálido, branco feito papel.

Na delegacia, o detetive contou tudo de uma vez, despejou tudo com uma frieza clínica. Disse que um crime horrível havia acontecido na nossa casa.

Quatro homens sequestraram uma garota de vinte e poucos anos. Levaram para lá, achando que estava abandonada. Roubaram seus pertences e fizeram de tudo com ela. Depois, a mataram e a enterraram no quintal.

Não só isso, mas estavam usando a casa como um tipo de centro de operações deles.

Haviam usado ela como cativeiro de sequestro relâmpago pelo menos umas duas vezes. Mataram alguns membros de alguma gangue rival e enterraram os corpos no quintal, entre outras coisas.

O detetive garantiu que já tinham revirado tudo, encontrado as ossadas, prendido os criminosos. E que meu pai não precisava se preocupar.

Mas ele saiu de lá arrasado. Tinham invadido o nosso paraíso e transformado em inferno.


Quando meu pai foi ver, o quintal estava revirado, cheio de buracos. A piscina imunda. Um dos quartos coberto de sangue seco. A casa inteira cheirava a urina. As paredes pichadas.

Irreconhecível. Uma cicatriz no meio do mato.

Decidimos reformar e que depois, venderíamos. A reforma levou tempo, mas aos poucos a casa voltou a sorrir: quintal bonito, paredes limpas, piscina azul.

Vendo o que ela já havia sido a muito tempo atrás, a vontade de vende-la sumiu.

Queríamos esquecer o que tinha acontecido. Transformar o lugar em algo feliz de novo.


Mas a vida já era outra. Quase ninguém tinha tempo de ir até lá. Com medo de que invadissem a casa de novo, cogitamos em alugá-la.

Mas eu já estava mais velho, com carro próprio, prestes a sair de casa. Pensei em morar lá. Assim a casa não ficaria abandonada e os outros poderiam ir lá sempre que quisessem.

No começo, meus pais não gostaram. Não foi fácil convencer eles, minha mãe não queria que eu ficasse sozinho lá, ainda com medo do que havia acontecido. Depois de muita conversa aceitaram, afinal se não fosse morar sozinho lá, seria sozinho em outro lugar. E lá fui eu, feliz da vida. Minha casa, minha independência.

Claro que imaginava levar o pessoal da faculdade, fazer festas, farra o tempo todo... mas aconteceu o contrário.


A rotina me engoliu. Faculdade, estrada, casa. Apesar de eu acostumar com a estrada todo santo dia, poucos queriam encarar o trajeto até a “minha casa”. Quando muito, alguém ia no final de semana.

E a casa era grande demais. Silêncio por todo lado. Cômodos escuros. A solidão começou a pesar.

Algum tempo depois, dessa rotina de solidão, consegui convencer meus pais a deixarem que eu chamasse alguns amigos para morar comigo. E foi fácil achar quem quisesse, dois amigos e uma amiga. A vida voltou a ter barulho. Risos. Festas. A casa parecia viva de novo.


Numa dessas festas, algumas das pessoas se juntaram na sala para contar histórias de terror. Histórias fracas que não assustavam ninguém. Até que eu resolvi abrir a minha boca. E falei demais. Contei o que realmente havia acontecido ali. Os crimes e os assassinatos.

O clima ficou pesado. Afinal, foi algo que realmente havia acontecido, ali onde todos estavam. Algo brutal.

Silêncio. Fui repreendido por alguns, afinal aquilo não era coisa que se brincasse. Jurei que, de fato, havia acontecido. Que a garota do crime tinha sido assassinada em um dos quarto lá de cima.

Um cara gritou: — “Então vamos lá em cima, fazer a brincadeira do copo no quarto e chamar o espírito dela!”

É claro que sempre tem alguém com uma ideia ruim. E o pior é que ninguém falou não.

Sentindo todos os pelos do meu braço arrepiando, subi atrás de todo mundo, enquanto o resto da festa rolava no andar de baixo

Esse quarto costumava ficar sempre vazio, geralmente usado pelas visitas de final de semana. Nos dias que meus amigos foram se mudando para a casa, ninguém se sentia bem nesse quarto, por isso virou o quarto reserva.

Lá dentro, arrastamos a cama para o canto, acendemos quatro velas e colocamos o copo sobre a mesa de cabeceira. Escrevemos todo o abecedário em papel e colocamos as letras ao redor do copo, junto com um SIM e NAO no canto.

Três de nós colocamos o dedo em cima do copo, principalmente para não virar bagunça, enquanto os outros ficaram ao redor. Fechamos os olhos enquanto os outros veriam a movimentação do copo.

No início, nada. Ficamos um tempo fazendo perguntas sem nada acontecer. Não demorou muito para as gracinhas começarem. Perguntas bestas e o copo se movendo (sendo empurrado) por um de nós três.

Depois de alguma reclamação para levar a coisa a sério, deixamos o copo quieto. Ficou parado. Perguntas, nada. Estávamos quase desistindo, quando o copo se moveu — bem de leve.

Perguntei se havia sido algum deles que havia mexido, afirmaram que não e mandara eu ficar quieto.

Perguntamos se havia alguém ali. O copo foi lentamente se arrastando até o SIM. Perguntamos o nome. O copo se mexia devagar entre as letras. Foi formando aos poucos: MARIANA.

O nome da garota. Senti aquele gelo subindo pela coluna. Ninguém sabia o nome dela além de mim.

Alguém ao fundo perguntou se era o espírito da moça que tinha morrido lá. O copo permaneceu imóvel.

Pouco tempo depois, outra pergunta: — “ O que você quer?”

O copo começou a se mexer devagar novamente, ganhando velocidade aos poucos. Mas apenas dando voltas na mesa, fazendo o sinal do infinito.

— “Não estamos entendendo, o que você quer?”

O copo começou a andar pelas letras novamente. Soletrou: V-A-O-E-M-B-O-R-A.

E de novo: V-A-O-E-M-B-O-R-A.

Uma terceira vez: V-A-O-E-M-B-O-R-A.

— “Por que você quer que a gente vá embora?”

As velas apagaram. O quarto esfriou. Um estalo seco ecoou no escuro gelado.


Quando acendemos a luz, o copo estava trincado. Os papéis com as letras estavam espalhados pelo chão, menos cinco que ainda estavam na mesa: E, M, O, R, T.

Uma das garotas, que estava com o dedo no copo durante a brincadeira ajeitou o “E” no fim: MORTE.

Um filete de sangue escorria do dedo dela.

— “Falta de respeito isso!” Um dos rapazes falou, irritado. — “Era para ser algo sério e vocês ficam de brincadeira de mau gosto!”

Provavelmente mais medo do que rancor na sua voz. Foi em direção à porta, os pés pisando forte no chão em sinal de protesto.

Quando ele abriu a porta, lá fora algumas pessoas com rostos preocupados nos olhavam. Disseram que ouviram gritos desesperados — de mulher. Tentaram abrir a porta, mas ela estava trancada. Só que nós não tínhamos trancado. Falaram que ficaram batendo na porta, tentando abrir, mas sem resposta. E os gritos lá dentro só ficavam cada vez mais histéricos (apesar de não ouvirmos nada). Até que os gritos pararam, e a porta se abriu.


Ninguém quis ficar mais. A festa acabou ali. Mas, depois daquela noite, a casa nunca mais foi a mesma.

Sussurros na noite. Portas batendo violentamente. Luzes piscando. As vezes, gritos do andar de cima que pareciam rasgar a alma. Um medo misturado com paranoia que não dava pra explicar.

Uma noite havíamos saído e na volta, vi uma sombra em uma das janelas. Me virei para falar para os outros e quando olhei de volta, não havia mais nada lá.

O clima na casa mudou completamente. Ficou mais sombrio, ninguém queria ficar sozinho lá.

Com o tempo, um a um, foram embora.

O primeiro dizia acordar se sentindo observado, ouvindo coisas. Algumas vezes o achamos dormindo na sala de manhã.

Depois, a garota — ouvia batidas na parede e choros baixos. Disse uma vez que sentiu algo passando pelo seu cabelo à noite na sua cama.

O último dizia sentir respiração perto dele, seu quarto esfriava do nada. Na sua última noite na casa, falou que estava quase dormindo, quando ouviu uma voz berrando no seu ouvido, à plenos pulmões — “SAI DAQUI! VAI EMBORA! ME DEIXA EM PAZ!”

Dormiu no meu quarto. De manhã, o colchão dele estava todo rasgado. Ele juntou as suas coisas e foi embora.


Fiquei morando sozinho lá por mais um tempo. Mas não aguentei. Ficou comum eu dormir no carro algumas noites, tinha medo de entrar na casa. O quarto “estranho” parecia respirar à noite.

Constantemente eu via vultos escuros à espreita, dentro de cômodos vazios.

No fim, voltei pra casa dos meus pais. Disse que era pela distância, pela estrada, que esse era o motivo da minha exaustão. Mas a verdade é que eu estava ficando louco com aquela rotina insólita de medo e paranoia.

Meu pai tentou alugar a casa, mas ninguém ficava por muito tempo.

Hoje, ela está lá. Vazia. Encostada no tempo.

Daqui a pouco, vai ser mesmo uma casa fantasma.

E eu juro — nunca mais chego perto dela.