Alguma Coisa na Minha Casa

Eu tinha acabado de sair da casa dos meus pais. Um marco simples, mas imenso. Depois de semanas de buscas encontrei uma casa modesta, numa vizinhança tranquila, com localização excelente. Não era grande nem nova — mas era minha. O meu abrigo dentro do caos da cidade.

No começo, tudo seguiu perfeitamente. A mudança, a arrumação, o prazer de organizar cada canto sem ninguém para dizer onde algo “deveria” ficar. Recebi a família, fiz um churrasco com os amigos, celebrei aquela sensação gloriosa de independência: a casa é minha, eu faço o que quiser. Por um tempo, eu vivi num paraíso particular.

Só que depois de algumas semanas — talvez dois meses — pequenos estranhamentos começaram a surgir. Ou, pensando bem, talvez estivessem lá desde o início, apenas escondidos sob a bagunça da mudança.

Objetos sumiam e reapareciam em lugares completamente absurdos. Uma manhã, prestes a sair para o trabalho, não encontrei a chave do carro de jeito nenhum. Procurei por todos os bolsos, gavetas, mesas… nada. Perdi o horário, peguei um táxi. À noite, fui ao banheiro e encontrei a chave no chão do box do chuveiro. Outra vez perdi o controle remoto da TV, e o reencontrei… dentro da privada. Na maioria das vezes, tudo reaparecia no banheiro. Outras vezes no micro-ondas, na geladeira, dentro de panelas ou enfiado em frestas impossíveis, onde nenhum chute distraído justificaria.

Mas eu nunca acreditei em fantasmas. E, segundo histórias antigas da minha família, eu tinha sido sonâmbulo quando criança. Convenci-me de que era eu mesmo, andando pela casa de madrugada, mudando tudo de lugar adormecido. Não cheguei a me assustar nem quando encontrei meu tênis dentro da geladeira. E como não era algo muito frequente, a vida seguiu.

Eu até me divertia. Tinha sempre algum episódio esquisito para contar aos amigos.

Até que, no sexto mês naquela casa, as coisas deixaram de ser engraçadas.

Certa noite, eu assistia a um filme com todas as luzes apagadas. A TV ficava ao lado do corredor, e com uma pequena virada de cabeça era possível ver a porta do meu quarto. Se estivesse aberta, dava para enxergar tudo lá dentro. Eu estava distraído quando vi — ou achei que vi — um movimento no quarto. Olhei direto para lá. A luz da TV atrapalhava a visão, mas parecia tudo normal. Eu ia voltar a olhar para o filme quando um vulto escuro saiu do meu quarto e entrou no banheiro.

Na hora, saltei do sofá, acendi a luz e agarrei uma cadeira como se fosse um escudo.

— Quem tá aí?! — gritei algumas vezes.

Nenhuma resposta.

Eu não sabia se chamava a polícia, se me escondia, se ia verificar. A minha mente só conseguia pensar em uma coisa: tem alguém aqui dentro. Fui até o banheiro. A porta estava aberta, e não havia ninguém. A janela basculante era estreita demais para alguém passar. Verifiquei o quarto, a casa inteira. Nada. Nenhum sinal de invasão.

Essa foi a primeira vez que vi o tal vulto.

A segunda aconteceu duas semanas depois. Eu chegava de uma noitada com uma amiga quando ela, no portão, perguntou:

— Tem alguém morando com você?

Respondi que não. Ela disse que viu alguém observando pela janela. Achei que fosse brincadeira ou uma desculpa para ir embora, mas ela insistiu. Abri a porta. Um frio anormal tomou conta da sala — não era inverno, não havia motivo. Procurei pela casa inteira. Nada. No dia seguinte ela foi embora dizendo que “a casa era estranha”. Nunca mais voltou. Nem tentou.

Eu continuei vendo o vulto, sempre rápido demais para entender sua forma, sempre no limite da visão. Até que algo aconteceu — algo que me expulsou dali de vez.

Numa noite comum, cheguei do trabalho exausto. Tranquei a porta, deixando a chave na fechadura, como sempre fazia para não perdê-la. Joguei o casaco no sofá e fui para a cama. Mesmo morto de cansaço, não consegui dormir. Fiquei revirando por horas, até que finalmente o sono começou a chegar.

Foi então que ouvi um som.

Um murmúrio distante. Alguém sussurrando.

Abri os olhos. Nada. Achei que fosse um vizinho, fechei os olhos outra vez. O sussurro continuou. Baixo, insistente. Não dava para entender as palavras, mas parecia tão próximo que obrigava a minha mente a tentar decifrar.

Aos poucos, o murmúrio foi diminuindo, se afastando… até quase sumir.

E, antes de desaparecer por completo, sussurrou o meu nome.

Abri os olhos na mesma hora. O silêncio depois desse chamado foi absoluto — como se o mundo tivesse prendido a respiração.

Então ouvi outro som. Desta vez ao lado da cama. Um borbulho grave, úmido, impossível de identificar. Parecia vindo do próprio chão.

Eu não tentei acender a luz.

Pulei da cama e corri para a sala. E lá dentro o frio era tão violento que doeu respirar. O som do borbulho no quarto parecia se mover. E do banheiro veio outro ruído: passos lentos, molhados, como se alguém caminhasse com meias encharcadas.

Sem pensar, avancei até a porta. Pânico! A chave não estava mais lá. A porta estava trancada por dentro — e sem a chave.

O sangue gelando nas veias. Os passos e o borbulhar se aproximavam.

A rota de fuga era a cozinha, e eu tinha que passar pela sala. Apenas olhei para o chão, para não ver nada que estivesse no corredor e corri. Atravessei a cozinha e saí pela porta dos fundos, que, para meu alívio, estava destrancada.

Corri pelo corredor lateral que atravessava a casa e pulei o pequeno portão de madeira ao final dele.

Na frente da casa, ao lado do carro, pensei na chave que deveria estar na porta — sumida, no momento.

Enquanto eu tentava pensar no que fazer, ouvi lá dentro o som claro, inconfundível, de um chaveiro sendo sacudido.

Aquilo… estava zombando de mim.

Fugi dali do jeito que estava — bermuda, casaco, descalço. Por sorte, minha carteira ainda estava no casaco — e consegui um táxi até a casa dos meus pais.

Chegando lá, meus pais ficaram alarmados com o meu estado. Eu tremia, não conseguia falar direito. Contei apenas o essencial — fragmentos, frases curtas — e eles insistiram em chamar a polícia, certos de que algum ladrão estava escondido na minha casa.

Mas a simples ideia de voltar lá, mesmo acompanhado, me fez sentir o estômago afundar.

Eu disse que deixasse pra amanhã, que se fosse um bandido, que levasse tudo. Naquela hora, eu não tinha força física nem emocional para enfrentar aquela casa de novo. Só queria fechar os olhos e fingir, por algumas horas, que nada daquilo tinha acontecido.

Quando voltamos à casa, de manhã, tudo estava no lugar. A porta dos fundos havia sido fechada, mas não trancada. Olhei cada cômodo com o meu pai, tentando não enlouquecer. Só no banheiro encontrei algo fora do lugar: meu chaveiro, perfeitamente posicionado no chão do box.

— Vamos — falei. — Eu não fico mais aqui.

Meu pai acreditava na versão dos ladrões. Mas ladrões não gelam uma sala inteira. Não sussurram nomes no escuro. Não fazem ruídos que não pertencem a nenhum organismo humano. E, claro, não saem de uma casa sem levar absolutamente nada.

Chegando à casa dos meus pais, liguei para o proprietário dizendo que não queria mais o imóvel. Só avisei que estava saindo. No dia seguinte ele passou lá para conferir a casa. Eu já tinha retirado tudo que era meu.

Ele perguntou o motivo da saída repentina — mas não parecia realmente querer a resposta. Era como se já soubesse. Inventei uma desculpa qualquer: distância, rotina, adaptação. Ele me ouviu em silêncio, com um olhar que não acreditava na minha história. Mas senti que ele sabia o motivo real.

A sensação era nítida: nós dois sabíamos que havia outra razão. E nenhum dos dois queria falar sobre ela. Ele apenas concordou com a cabeça, como quem reconhece um acordo não dito, e me isentou da multa pela quebra do contrato. Esse gesto, mais do que qualquer palavra, só reforçou a certeza de que ele sabia muito bem o que habitava aquela casa.

Voltei a morar com os meus pais. Por um tempo.

E, quando chegar a hora de ter meu próprio lugar de novo… será dividido com alguém. Morar sozinho, depois daquela casa, não é uma opção que eu cogito tão cedo.